Rádio BCR - Cultura Alternativa
Do Contemplativo ao Expositivo
Quando a arte torna-se apenas um produto de consumo.
Por Geff Trader
Publicado em 11/06/2025 15:18 • Atualizado 17/06/2025 14:33
Entretenimento
Safo e Alceu, considerados fundadores da lírica monódica. Representação de Lawrence Alma-Tadema (1881).

 

Do Contemplativo ao Expositivo: Quando a arte torna-se apenas um produto de consumo.

Um dos principais elementos que compõem o Homo Sapiens após a chamada Revolução Cognitiva foi sua sensibilidade às expressões artísticas. Há um consenso acadêmico em classificar o som como a primeira arte. Desde as simples entonações provocadas pelas cordas vocais até aos modernos sintetizadores, tudo se enquadra nessa nobre arte primordial.

 A música, para os povos antigos, era a ponte de união entre o mundo material e o sagrado. Funcionava como ferramenta de potencialização de narrativas míticas e aventureiras. Também era um instrumento de manutenção das relações humanas, que iam de grandes banquetes a pequenas rodas em torno de uma fogueira.

Porém, a percepção e o engajamento humano com os efeitos sonoros na contemporaneidade possuem similaridades com a maneira pela qual nossos antepassados relacionavam-se com tais composições?

A questão foi e ainda é problematizada por diversos intelectuais. (Começamos falando de música, mas a partir deste momento a reflexão se estende às mais variadas formas de produção artística). Em seu texto "A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica", Walter Benjamin (1892-1940) aborda o assunto. Filósofo, ensaísta e crítico literário alemão, Benjamin é considerado um dos maiores pensadores do século XX, e seus escritos ainda reverberam em diversas áreas do conhecimento.

Segundo Benjamin, a forma como nos relacionamos com a arte sofreu drásticas mudanças com o desenvolvimento do capitalismo. Anteriormente, o ser humano tinha uma relação de contemplação com a obra artística. As obras possuíam o que Benjamin denomina "aura", pois o criador transmitia para sua peça, de forma consciente ou inconsciente, suas experiências de vida. Isso levava os apreciadores da arte a absorverem tal experiência de maneira contemplativa, e a própria apreciação construía sentidos que influenciavam a percepção de mundo do observador.

A obra de arte não tinha como sentido de existência a exposição, e não era passível de reprodução ágil. Mesmo que um indivíduo se especializasse em reproduzir esculturas ou pinturas de outros artistas, esse processo levava anos de dedicação e aprendizado das técnicas utilizadas; em outras palavras, da experiência do artista que o copiador estaria tentando reproduzir.

“Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra. É nessa existência única, e somente nela, que se desdobra à história da obra.” (Benjamin, 1994, p. 167). Esse aqui e agora da obra de arte constitui a sua autenticidade, e nela enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias. A obra possui uma carga de experiência e a ser transmitida, isso é a manifestação da aura do artista.

Com o avanço da técnica, impulsionado pelo desenvolvimento do capitalismo, a reprodução acelerada das obras de arte tornou-se possível. A relação do ser humano com a arte começa a deixar de ser contemplativa e passa a ser expositiva. A valoração da obra não reside mais na carga de experiência que o artista deposita em sua execução, mas sim na sua capacidade de rápida reprodução e exibição. 

 

Se o sentido agora é expor, então a necessidade de gerar cópias torna-se um norte a ser seguido. A contemplação da obra de arte é esmagada pela pesada maquinaria cujas engrenagens destroem a aura do artista, a fim de replicar apenas de forma técnica e ágil a criação original. Vivemos o ápice dessa reprodutibilidade com o surgimento das IAs.

Walter Benjamin não desconsidera a importância de tais avanços; eles possibilitam o acesso das massas às artes, permitindo que estas comecem a desenvolver, por meio da contemplação, a consciência do lugar social em que estão inseridas. No entanto, Benjamin identifica um problema: tal avanço seria uma ameaça para os grupos dominantes. Por isso, a foco na mera replicação técnica da arte para fins mercadológicos torna-se a norma, mantendo a população sem um desenvolvimento da sensibilidade com o mundo em que habita e, consequentemente, sem a ampliação do pensamento crítico.

O filósofo e historiador da arte Didi-Huberman (1953 - presente), em sua obra "A Sobrevivência dos Vaga-lumes", destrincha de forma espetacular as premissas de Benjamin abordadas até este momento. O livro inicia com as reflexões do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975). Em uma noite, Pasolini estava passeando por uma localidade onde costumava andar na infância e notou que os vaga-lumes que ali habitavam haviam simplesmente desaparecido.

A orquestra de lampejos havia desaparecido diante dos enormes holofotes artificiais que, impulsionados pela industrialização, tomaram conta do ambiente. No entanto, quando Pasolini se esforçou para procurar os vaga-lumes, encontrou alguns poucos resistindo ao ofuscamento provocado pelas luzes da modernização.

Esse evento serve como uma metáfora interessante. Os holofotes representam a rápida expansão das técnicas de industrialização, de poder, da mídia e da mercantilização da arte, que resultam na homogeneização da sociedade e na rejeição das diferenças, das singularidades dos indivíduos – em outras palavras, das auras. É uma luz que afasta todas as sombras e mistérios, eliminando a necessidade de reflexão ou contemplação sobre as coisas, pois já estão apresentadas. Tudo deve estar exposto.

Quantos exemplos conhecemos de pintores que exibiam suas obras nas ruas – muitas vezes até em frente a museus e galerias de arte – mas não eram reconhecidos? No entanto, após ter a sorte de um galerista ou curador expor seus trabalhos, o artista ganhou fama e sua arte começou a ser valorizada?

O filósofo sul-coreano e leitor de Benjamin, Byung-Chul Han (1959 - presente), em sua obra "A Sociedade da Transparência", mostra-nos como a lógica da exposição está exacerbada na contemporaneidade. Tudo se torna informação, submetido a exploração e monitoramento por governos e grandes empresas. Chegando ao nível do indivíduo passar a auto explorar-se voluntariamente por meio das redes sociais. 

O mistério, o oculto e as sombras são eliminados pela sociedade da transparência. Não é mais necessário dedicar tempo ao espinhoso e estreito caminho da reflexão para a compreensão das coisas, pois a grande luz que vem do horizonte emitida pelos holofotes, LEDs e Displays já as revela por completo. 

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“Ver o horizonte, o além é não ver a imagens que vêm nos tocar. Os pequenos vaga-lumes dão forma e lampejo a nossa frágil imanência, os “ferozes projetores” da grande luz devoram toda a forma e todo o lampejo – toda a diferença – na transcendência dos fins derradeiros. Dar exclusiva atenção ao horizonte é tornar-se incapaz de olhar a menor imagem.” (Didi-Huberman, 2011, p. 115)

A aceleração faz parte deste processo de transparência. O imediatismo corrói a reflexão e a contemplação, gerando uma intensa superficialidade. As obras de arte seguem esse mesmo destino: sua produção deve ser rápida e a mais transparente possível para permitir um consumo veloz. As técnicas de reprodutibilidade são acentuadas com esse propósito.

Entretanto, da mesma forma que os pequenos lampejos dos vaga-lumes resistem ao ofuscamento dos holofotes artificiais, ainda há indivíduos que procuram resistir à lógica da aceleração e tecnificação que domina nossa sociedade. Buscam contemplar as diversas formas de arte que também se opõem à lógica da reprodutibilidade, mantendo assim viva a troca de experiências que auxiliam nos momentos de lampejos reflexivos.

Poderia o Bom ConRock - Cultura Alternativa ser, ou vir a se tornar, um desses raros vales que asseguram o lampejo dos Vaga-Lumes, os quais insistem em resistir ao ofuscamento dos holofotes?

Autor: Thiago Henrique. Professor de História. Nos acréscimos do término do mestrado.

Referências:

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 165-196.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A sobrevivência dos vaga-lumes. Tradução de Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

HAN, Byung-Chul. A sociedade da transparência. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

 

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